Concedei-me a Vossa proteção…

O facto de a Oração da Gorsedd começar com um pedido de proteção aponta para algo de fundamental acerca da natureza humana. Como se proclama na abertura de cada rito dentro do revivalismo druídico, “sem Paz nenhuma obra pode ser feita”. E no entendimento científico moderno, é fundamental que o corpo se sinta em segurança para poder processar de forma saudável as experiências que a vida trouxer.

Pedir proteção supõe que essa proteção é possível. É um acto que desafia desde logo a cultura da competitividade, do ódio e do isolamento. Ao contrário do que diversos modelos económicos possam dizer, é possível sim uma alternativa; ao contrário do que o ciclo noticioso e os algoritmos digitais nos sugerem, não estamos constantemente sob ataque de misteriosos inimigos. A solidariedade é possível porque existimos e estamos em constante interdependência — essa é uma faceta da “Verdade contra o Mundo” por que Iolo Morganwg se guiava e que os bardos de Gales ainda hoje declaram a cada Eisteddfod.

As tradições monoteístas exploram a fundo o conceito de Graça, isto é, a ideia de que o Divino oferece os seus dons a qualquer criatura, mesmo que ela não o “mereça”. Afinal de contas, o Sol nasce para todes e não há acto individual que possa compensar isso. Numa perspectiva mais telúrica ou mesmo politeísta, entende-se facilmente que a existência neste mundo (uma existência inerentemente jubilosa, para a tradição druídica) é um grande dom construído em cooperação por múltiplas partes.

Antes de pedirmos o que quer que seja, antes de fazermos qualquer oferenda aos deuses e ancestrais, já beneficiamos do ar que respiramos, da água que nasce das montanhas, da luz do Sol, de diversas fontes de alimento. De certa forma, o ciclo que os clássicos designavam de “do ut des” raramente começa com um agente humano. Não que o mundo gire à nossa volta, afinal de contas: a dádiva dos ancestrais é comunitária.

E a proteção é também um acto comunitário.

Estamos em comunidade com os deuses, os espíritos e todas os demais seres da terra, do mar e do ar. Uma das principais funções de uma comunidade é o da entre-ajuda, o olhar uns pelos outros, o saber que nos querem bem. O ter chão. Quando peço proteção, comprometo-me a passar essa dádiva a outro alguém, e isso é algo que a Prece Druídica descreve de forma claríssima, como veremos em futuras reflexões.

Pedir por proteção não é uma confissão de medo. É uma postura de quem se abre ao mundo, de quem sai da dormência imposta pelos ritmos industriais para regressar ao seu espaço na Grande Teia onde cada ser é visível e tem valor inerente. É uma condenação dos falhanços do antropocentrismo e do Capital. Aqui substituímos os muros do Estado-polícia com o calor do conselho reunido em torno da fogueira.

Pedir por proteção não nega a nossa responsabilidade pessoal; antes, consolida e re-enquadra essa responsabilidade.

Pedir por proteção é uma consequência lógica dos mitos que nos inspiram. A mim, por exemplo, inspira-me uma Irlanda povoada por vagas de imigrantes (incluindo os deuses!) cujas antigas leis promoviam a adopção temporária, o cuidado de todes por todes. Uma Terra que negocia a partilha da sua soberania com quem pretende habitá-la. Desde Amergin, a quem foi cedida passagem depois de reconhecer o Nome da ilha, a Cú Chulainn, que sofreu as consequências após rejeitar o apoio d’A Morrígan.

Nós pertencemos a esta teia que em termos modernos designámos por Oran Mór. E por isso, diante dos Ancestrais que reconhecemos por nome, começamos por assumir o nosso lugar na comunidade. Pedimos e concedemos proteção.

Subscreve a newsletter

Assina para receberes cartas electrónicas ocasionais com reflexões sazonais, diretamente aqui do Bosque.