O mar numa praia do sul da Irlanda

Quem é Manannán mac Lir?

Manannán ou Mannan mac Lir é uma divindade que faz parte das tradições mitológicas do espaço gaélico — Irlanda, Escócia e Ilha de Man. Embora seja comum imaginarmos Manannán sobretudo como um deus do mar, não podemos entendê-lo por completo sem cruzarmos este e outros dos seus atributos com a cultura onde ele emergiu: Manannán é o rei do Outro Mundo além das ondas, o Senhor da sabedoria, do disfarce e da transformação. Mannanán é a Alma Gaélica do Mar, da Magia e da Liminaridade.

O seu nome provém da Ilha de Man, situada entre a Irlanda e a Grã-Bretanha. Historicamente, a Ilha de Man era vista pelas nações circundantes como um local quase mítico, e não apenas físico. O nome de Manannán indica, portanto, desde logo uma origem mítica ou do Outro Mundo.

Os habitantes da ilha, os maneses, referem-se-lhe com um termo afetuoso: “Manannán beg”, ou “querido Manannán-zinho”. Diz-se que Manannán protege a ilha com a sua névoa, tornando-a invisível aos inimigos, e que terá tido o seu trono no monte de South Barrule, onde a população pagava tributo ao deus oferecendo-lhe juncos a cada verão.

Estátua de Manannán Mac Lir, na montanha de Binevanagh, na Irlanda do
Norte.
Estátua de Manannán Mac Lir, na montanha de Binevanagh, na Irlanda do Norte. Fonte: Kenneth Allen / Licença CC BY-SA 2.0

Com o passar do tempo, a associação de Manannán ao Outro Mundo foi-se solidificando, e acabou por se atribuir a sua morada à ilha de Emain Ablach, “Emain das Maçãs”. Este lugar, que talvez se refira à própria Ilha de Man, é descrito como um paraíso sem dor, tristeza, engano, doença ou morte. Outros nomes para este local incluem Mag Mell, o Lugar Agradável, e Tír Tairngire, a Terra da Promessa.

Manannán é também chamado Mac Lir, “filho do Mar”, mas não deve ser confundido com o Lir de outros mitos, aquele cujos filhos são transformados em cisnes pela sua madrasta Aoife. Em alguns textos, o pai de Manannán dá também pelo nome de “Allot”.

Na mitologia galesa, existe uma entidade de nome similar, Manawydan fab Llyr, que poderá estar associada a Manannán. Ele é conhecido por outros nomes ainda, como Oirbsiu ou Orbsen.

Na Mitologia Irlandesa

Manannán aparece em todos os ciclos da mitologia irlandesa (o Ciclo Mitológico, o Ciclo dos Reis, o Ciclo Feniano e o Ciclo de Ulster), bem como em algumas histórias de viagens (ou “Imramma”) ou de aventuras (ou “Echtraí”). Segundo o Livro das Invasões da Irlanda, ele é eleito rei entre os Tuatha Dé Danann após a derrota sofrida pelos deuses perante os humanos, e ajuda-os a integrar-se no reino das fadas, os Aos Sídhe, sobre o qual ele preside.

Manannán atribui a cada um dos deuses uma morada oculta sob a paisagem, e concede-lhes três presentes: o “Feth Fiadha”, o manto da invisibilidade, que lhes permite mover-se entre os mortais; o banquete de Goibhniu, que mantinha os deuses vivos e jovens; e os porcos de Manannán, que podiam ser abatidos e ressuscitados, fornecendo alimento sem fim. Em agradecimento, os deuses passaram a convidá-lo para cada banquete e casamento.

Deus do Mar, das Viagens e da Magia

Manannán possui um grande leque de poderes mágicos. Ele não só domina o mar como controla as suas ondas e, consequentemente, o estado do tempo nas suas ilhas. Diz-se que o mar é para ele como uma planície com flores e gado, e as ondas são descritas como “cavalos de Manannán”.

Ele é capaz de viajar mais rápido que o vento e, na Ilha de Man, acredita-se que ele entra pela terra como uma roda de fogo sobre três pernas, refletindo o símbolo do tríscele ou triskelion, presente na bandeira da ilha.

A bandeira de Ilha de Man, figurando uma tríscele composta pelas pernas de
Manannán.
A bandeira da Ilha de Man. Fonte: Gemma Lister / Licença CC BY-NC-ND 2.0

Manannán também cria ilusões realistas e altera o destino das pessoas com o seu manto, que provoca esquecimento — um estado semelhante à transição entre o mundo dos sonhos e a realidade.

Os objetos e seres mágicos associados a Manannán incluem:

  • o seu manto, tanto literal como no sentido das névoas marítimas;
  • um ramo prateado com guizos e maçãs douradas, capaz de induzir calma e sono, como na história do Rei Cormac;
  • um cálice que se despedaça na presença da mentira e se restaura na presença da verdade;
  • a sua armadura impenetrável;
  • a sua fiel espada, chamada Retaliadora/Respondente, “Fragarach”;
  • a sua Bolsa de Garça, assim designada por ter sido feita a partir do corpo de Aoife, transformada em garça;
  • e o seu barco de bronze, que se desloca à velocidade do pensamento.

Deus Trapaceiro

Manannán costuma ser categorizado entre a classe dos deuses ditos “tricksters”, ou trapaceiros, usando frequentemente o engano e o disfarce para beneficiar as pessoas com quem interage. No entanto, por vezes parece caprichoso e malevolente, mudando de humor como o próprio mar.

Nem sempre as suas intenções são as mais harmoniosas: na história Altram Tige Dá Medar, por exemplo, depois de atribuir os lugares no reino dos Sídhe aos deuses, Manannán influencia Aengus a tomar posse de Brugh na Boinne (Newgrange), que já pertencia a Elcmar, seu pai adotivo.

Manannán é descrito ora como um belo e poderoso guerreiro, ora como um gigante feio e desvalido; ora como jovem e louro, ora de meia-idade e grisalho. A sua própria aparência humana é um disfarce, que modela e transforma conforme as circunstâncias.

Dado o seu estatuto divino, Manannán vê as coisas a partir de uma perspectiva mais ampla. Ele pode recorrer ao engano para garantir o equilíbrio geral, ou provocar perdas presentes para assegurar ganhos futuros. Não por ser omnisciente, mas por viver fora dos nossos marcadores temporais. Afinal, são os próprios mitos que nos dizem com insistência que o tempo passa de forma diferente no Outro Mundo.

Brú na Bóinne, em Newgrange, na
Irlanda.
Brú na Boinne em Newgrange, Irlanda. Fonte: Bruno Panel / Licença CC BY-NC-SA

Deus Liminar

Manannán é um deus liminar, que se movimenta com facilidade entre os elementos, entre sonho e realidade, entre um mundo e outro. Ele ultrapassa todas as fronteiras impostas pelas estruturas sociais e hierárquicas, inclusive as de género.

Por exemplo, no mito da Viagem de Bran, podemos encontrá-lo sob a aparência de uma mulher vinda de Emain Ablach, segurando um ramo de macieira semelhante ao de outros dos seus mitos. Já no decorrer da viagem de Bran e dos seus companheiros, Manannán surge novamente, desta vez já na sua aparência habitual, a conduzir a sua majestosa carruagem sobre as ondas.

Há várias histórias que apresentam o Filho do Mar no papel de guardião adoptivo dos filhos de terceiros — uma função, de resto, altamente prezada na sociedade medieval irlandesa. Entre eles, contam-se o deus Lugh e os filhos de Deirdre e Naoise.

Manannán também gere os destinos dos deuses irlandeses na sua nova vida entre os Aos Sídhe, sem contudo fazer parte dos Tuatha Dé Danann. Alguns autores, aliás, consideram que Mannan era um dos Fomorianos, uma tribo de entidades sobrenaturais anteriores aos TDD.

Por vezes, quando a mitologia irlandesa não o descreve como rei do Outro Mundo, Manannán também pode aparecer entre os humanos no papel de mercador itinerante.

Manannán desafia as regras da própria morte, pois continuam a surgir novos mitos e lendas sobre ele até à Idade Moderna, mesmo após o folclore ter estabelecido uma história sobre a sua suposta morte em batalha. Acredita-se que, ao ser enterrado na província de Connacht, do seu corpo brotou um lago, Loch Orbsen.

Mac Lir é ainda um deus que vai além das fronteiras geográficas, abrangendo meio-mundo se considerarmos o Atlântico como o seu corpo literal. A Ilha de Man, onde se diz ficar o seu trono, situa-se entre a Irlanda e a Grã-Bretanha, e ele está presente sob outras formas na mitologia galesa.

Na Ilha de Man, o costume de ofertar juncos no solstício de verão implica que os locais reconhecem que os humanos não são os verdadeiros donos da terra, tal como os deuses irlandeses não possuíam as paisagens que Manannán lhes concedeu para viver. Os juncos, que crescem tanto em água salgada como de rio, refletem também a natureza liminar de Manannán, associada tanto ao mar como aos lagos.

Monte de South Barrule, na Ilha de
Man
Monte de South Barrule, na Ilha de Man. Fonte: Culture Vannin

Em Conclusão

Ainda hoje, do fundo do mar ou do alto de South Barrule, Manannán continua a interpelar-nos com a sua presença tão magnética quanto desconcertante.

Este deus do mar e do Outro Mundo não é apenas um guardião dos espaços entre o céu, a terra e a água, mas também um mestre da transformação e da magia que continuamente modela a realidade.

As suas histórias, cheias de paradoxos e enigmas, desafiam-nos a ver além das aparências e a abraçar a ambiguidade do nosso mundo — de todos os mundos.

Bibliografia

  • Daimler, Morgan, (2019). Pagan Portals — Manannán mac Lir: Meeting the God of Wave and Wonder
  • Ellis, Peter Beresford, (1987). A Dictionary of Irish Mythology
  • Jones, Mary, (2003). Manannán mac Lir em maryjones.us
  • Macalister, Robert Alexander Stewart, trad. (1944). Lebor Gabala Erenn, vol. 4
  • Ó hÓgáin, Dáithí, (2006). The Lore of Ireland

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