Sob o Manto de Airmid

Na tradição mitológica irlandesa, conta-se que havia entre os Tuatha Dé Danann uma família de curandeiros, cujos nomes podem não estar entre os mais conhecidos para muitos dos que seguem a Via Antiga, mas cujas curtas intervenções na grande história das batalhas pela posse da Irlanda acabaram por se revelar fulcrais para os interesses da sua tribo.

Um dos exemplos é o episódio em que Nuada, o primeiro rei dos Dé Danann, perde um dos seus braços em combate. Segundo a lei, um homem “incompleto” (uma noção que pode ser entendida de modo mais pleno a partir de um ponto de vista iniciático, como veremos adiante) não era digno de governar, o que implicava que a tribo haveria de perder o poder para Bres, um semi-Fomoriano e, portanto, um inimigo.

Dian Cecht, o curandeiro-mor, acudiu a Nuada com os seus filhos, Miach e a sua irmã Airmid, para restituir ao rei a mão perdida. Dian Cecht ofereceu-lhe um braço de prata que se movimentava tal como um membro de carne, mas mais tarde, Miach e Airmid reconstruíram-lhe o braço decepado, carne, osso e sangue, recorrendo, segundo consta, a uma cantilena que aparece registada na Carmina Gaedelica de Alexander Carmichael:

Osso com osso,
Veia com veia,
Bálsamo com bálsamo,

Seiva com seiva,
Pele com pele,
Tecido com tecido,

Sangue com sangue,
Carne com carne,
Tendão com tendão,

Medula com medula,
Miolo com miolo,
Gordura com gordura,

Membrana com membrana,
Fibra com fibra,
Mucosa com mucosa.

— in Carmina Gaedelica

Movido pela inveja, ultrapassado pelos conhecimentos dos seus descendentes, Dian Cecht enfurece-se e mata o próprio filho. Mais tarde, Airmid, chorosa, visita o irmão na sua campa e repara que do seu corpo cresceram várias ervas diferentes — mais precisamente, 365 ervas, o mesmo número das suas articulações e tendões, mas também um sinal de que elas encerravam um propósito útil para todas as ocasiões, mesmo além da sua época própria dependendo do modo de preparação. Airmid apercebe-se de que cada uma das ervas está situada precisamente na região do corpo que é suposto tratar, e de imediato começa a recolhê-las no seu manto, catalogando-as em conformidade.

Contudo, a fúria de Dian Cecht não vê fim, e logo o deus da cura aparece no local para espalhar as ervas e impedir que o conhecimento dos filhos se propague no mundo. Esta história, que como qualquer mito transmite um saber que vai além das próprias palavras, contém um entendimento profundo do estado que a verdadeira cura pretende proporcionar, e que nada mais é que um estado inicial do Ser: o de uma completude que depende directamente da harmonização entre o corpo do Homem e o corpo da Natureza em que está inserido e de que é espelho e miniatura: “o que está em cima é como o que está em baixo”.

Esta identificação tão directa entre Homem e Natureza contrasta com o modus operandi que veio a caracterizar a nossa civilização, em que a especialização de funções — numa sociedade supostamente mais móvel que nunca — retirou ao indivíduo determinadas porções essenciais de conhecimento, e em que a relação desejável de interdependência entre pessoas e regiões se diluiu numa excessiva dependência dum conjunto selecto de autoridades que determinam a configuração dos territórios, dos alimentos e da medicina ao ponto de tornar virtualmente impossíveis quaisquer outras escolhas. Inclusivamente, a opção por um estilo de vida ou dieta ditos mais éticos é vendida (e devidamente capitalizada pelas mesmíssimas autoridades e suas indústrias), mesmo a “cinco minutos da meia-noite”, como uma responsabilidade meramente individual e não como um remendo negligenciável diante da indiferença de umas quantas dezenas de barões. Um “regresso à Natureza” enquadrado pelas mesmas categorias antropocêntricas que nos dividem ao meio. Sem dúvida, Dian Cecht continua presente, a espalhar a confusão e o engano.

A cura, a reconstituição do corpo de Miach que antes restaurara o corpo de Nuada é, portanto, uma constante caminhada rumo à integração, em jeito de resistência ao “desamparo aprendido” por detrás de tantos traumas particulares e do próprio trauma colectivo e civilizacional que as alimenta e que por elas reforça o seu encantamento. Na etimologia proto-indo-europeia, o conceito de cura está directamente ligado ao de inteireza, como na raiz *hailaz-, que em línguas como o alemão produziu os étimos heil, heilig, geheilt; ou, de modo equivalente, a raíz *solh2-, que nas línguas românicas derivou em “são, santo, saudável”. São diversas as vias pelas quais podemos proceder a esta re-constituição do Ser: quer através de uma reconciliação com a Terra e com a terra onde se vive, empenhando-nos no reencontro com a fauna, a flora e a comunidade, quer reaprendendo determinadas competências elementares na cozinha (pois não é o Caldeirão a fonte do Awen?), quer redescobrindo as propriedades curativas de cada erva, de cada alimento, para que cada refeição seja de facto o primeiro dos remédios (e não um veículo para se castigar o corpo), e para que cada um reivindique o seu papel como agente primordial de cura.

O trabalho de quem busca a iniciação pela via druídica, e em particular da vocação de Ovate, é o mesmo de Airmid compondo peça a peça o saber confundido por outrem. Um saber que olha para o homem feito jardim e discerne o Rosto para além do espelho: a completude, a saúde no plano exterior está em diálogo permanente com a consciência da Plenitude no plano interior. Airmid é capaz de transmitir as artes curativas porque, antes de catalogar centenas de plantas, as “dez mil coisas”, testemunhou a unidade fundamental entre o Homem e o Natural, entre o Manifesto e a Ideia. Do mesmo modo, a primeira habilidade a recuperar pelo Ser é a própria noção de Quem verdadeiramente É, de quem, mestre de Si, jamais se sujeita mas tudo partilha. Eis a perspectiva do iniciado, a partir da qual tudo é possibilidade, soberania e magia, escondida atrás do véu, como os Sidhe atrás das colinas e nascentes da Irlanda, mas também atrás dos densos muros do encantamento cultural que nos conformam a identidades rígidas, utilitárias e pequenas.

Que esta época de Samhain seja propícia ao desvanecer desses véus, e que, para além do nevoeiro, seja possível entrarmos novamente em contacto com o Fogo e a Água primordiais que continuamente originam todas as coisas.


Artigo originalmente publicado no número 8 da Revista Ophiusa da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas, em Novembro de 2018.

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