Dia 2. Cosmologia

No princípio era o silêncio. E de súbito o silêncio se fez grito primordial, urgência. Desejo ardente. De um encantamento tamanho que da explosão se fizeram estrelas, planetas, galáxias inteiras. E também continentes e oceanos, vales e montanhas, árvores que falam baixinho quando paramos para as escutar. Vieram ainda animais de escamas, pêlo e pluma. E nós humanos, pelo meio. 

Dizem que ainda hoje os deuses governam os dias e as noites, o amor e a morte. Mas se foi do silêncio que todas as coisas emergiram, foi pela poesia que ganharam o seu primeiro fôlego. Foi pela poesia que viemos a ser muitos. Deuses, espíritos, fantasmas, memórias, sombras, pedras, plantas, animais, novos e velhos. Todos, de certa forma, viventes. Assim se concedeu a cada ser uma melodia única e invicta, e uma voz com que cantar. Assim se colocou em andamento a grande Canção do Mundo. Ainda hoje dançamos ao seu ritmo; uns a contra-gosto e contrapasso, outros tecendo a mesma dança para que toda a gente possa entrar na roda.

Esta é uma paráfrase do conceito a que o autor Frank Mills deu o nome de Oran Mór, ou Grande Canção. E há quem diga por isso que se trata de uma fraca cosmologia para quem queira trilhar um caminho sério e sólido. Como se os caminhos sérios não fossem sobre-valorizados. Como se todos os mitos da criação não fossem, cada um a seu jeito, ficção e realidade. 

As cosmologias ensinam-nos qual a ordem do mundo, segundo o filtro de determinadas culturas, línguas e linguagens. Fazem-no puxando a cadeira para ocuparmos o nosso próprio lugar nessa ordem cósmica. Pode ser que esta dinâmica resvale para uma forma de determinismo. É um dos extremos possíveis quando se trabalha com uma ferramenta que tem tanto de estética como de ética. Porém a druidaria que pratico alerta: as palavras são coisas. A estética é uma ética. A história que contamos sobre a formação dos Mundos é a contínua estória do crescimento do nosso mundo interior e de como ele interage com os mundos à nossa volta. Os deuses a quem atribuímos a ordem das coisas reflectem a ordem que lhes daríamos se estivéssemos nós ao comando de todos os destinos.

A druidaria que pratico recorda, como faziam os celtas, que estamos em total paridade com todos os seres, com uma graça original mas também com um dever intrínseco. Foi com uma postura desassombrada, tu-cá-tu-lá, que os primeiros humanos a desembarcar na costa irlandesa terão chegado ao empate com os deuses do lugar na guerra pelo domínio da ilha. Dizem os mitos. E assim se chegou à mais acertada das partilhas de bens: aos humanos, uma morada no mundo visível; aos espíritos do lugar, um refúgio nos vales e rios da Irlanda. Ambas as histórias decorrem em simultâneo, sobrepostas como numa narrativa bem-tecida.

Com a Natureza por fio condutor.

Ainda que Brígida e o Dagda nunca tenham existido, o contrato entre as pessoas e o lugar ficou firmado para todo o sempre. E com ele, a sede, a escuta, a reverência, a caminhada.

Herdámos do desejo primordial a capacidade de formar novos mundos em cada gesto, em todos os discursos. Somos fruto da poesia, e por ela havemos de ser poetas até ao fim das palavras. Eis o sentido de toda a vocação bárdica.

Eu sou filho da Poesia,
A Poesia, filha da Reflexão, 
A Reflexão, filha da Meditação,
A Meditação, filha das Estórias,
As Estórias, filhas da Busca,
A Busca, filha do Grande Conhecimento,
O Grande Conhecimento, filho da Inteligência, 
A Inteligência, filha da Compreensão,
A Compreensão, filha da Sabedoria,
A Sabedoria, filha dos três deuses de Dana.

— in Colóquio dos Dois Sábios